Certo dia, indo à Fundação Iberê
Camargo para visitar a exposição “Fortuna” de William Kentridge comecei a ver a
paisagem ao redor com o olhar mais observador e no momento em que se começa a
fazer isso é como se fosse inevitável não começar a tentar poetizar sobre
alguma coisa, sensação ou impressão, o engraçado é que surgem algumas ideias
poéticas que naquele momento parecem ser interessantíssimas e que na hora eu
penso que são ideias que devo futuramente elaborar melhor e no intuito de
tentar registrar isso para, quem sabe, posteriormente rebuscar aquelas ideias,
me deparo com fotografias que não se assemelham em nada com aquela atmosfera inspiradora
e propícia para a reflexão. A constatação deste fato me faz afirmar que não há
registro existente que consiga substituir toda a intensidade e complexidade de
uma fração do existir de um determinado momento, em um determinado lugar. Tudo
o que se fizer, ou disser, serão apenas tentativas de mostrar ou tentar fazer
alguém ter alguma ideia de algo que está acontecendo no agora daquele tempo/espaço
e que jamais será novamente porque o depois é constituído por um outro e novo
agora com outras e novas coisas/ relações/ interferências. Sendo então, tudo
que já foi é impossível ser novamente. Se não há registro que dê conta de toda
abrangência de algo, o jeito é estar. Ou seja, viver. E este não é um viver que
se assemelha ao viver da ida ao trabalho, da corrida até o supermercado, do
horário marcado para a consulta médica, etc. Falo de um específico viver que
pode fazer brotar inúmeras e efervescentes correlações, o viver de um momento
qualquer, mas que transcende em poética e subjetividade, que tem o alcance de abarcar
um observar mais minucioso e a contemplação.
A alusão a este estado de
contemplação se deve ao fato de que percebi assim estar mesmo antes de entrar
na Fundação Iberê Camargo para a exposição “Fortuna” de William Kentridge e
isso me faz concluir que no momento em que a gente se propõe a visitar uma
exposição, já acionamos um “dispositivo” que nos “diz” para funcionarmos no
modo apreciativo e, por conseguinte reflexivo. Acredito que todos deveriam manter
a predisposição de permitir que nos momentos de contato com a arte este estado
propício contemplativo pudesse vigorar plenamente sem ser suprimido, ou mais do
que isso, as pessoas deveriam se permitir e deixar que esse estado artístico imbuísse
de arte as coisas cotidianas também, como diz uma frase atribuída a Mahatma
Gandhi: “A arte da vida consiste em
fazer da vida uma obra de arte.” E com isso quem sabe poderíamos ter na
sociedade menos pessoas doentes e dementes que conseguem encontrar um meio de dar
uma desacelerada nesta correria desenfreada de uma sociedade neoliberal. Pode
parecer um pouco piegas ou um apelo de pretensão salvacionista, mas acredito
que esta é uma atitude que poderia servir como um oásis onde cada um encontra o
que necessita para suprir as lacunas da sua sobrevivência e dar completude à
sua existência.
Esta reflexão inicial
obviamente não tem como respaldo apenas o período que se antecedeu à visitação,
pois a exposição como um todo, contribuiu para que eu pudesse discorrer sobre
as afirmações que tentei elucidar acima.
Envolvendo-me na exposição
percebi que o que de mais magnífico existia ali era que William Kentridge
compartilha parte de sua história, seus interesses, sua visão de mundo e,
portanto, suas completudes ou quem sabe incompletudes.
Ao passar por entre as obras
de William Kentridge, mergulhei em um cenário que me dava constantes pistas de
quem era o artista. Posso dizer que ele foi se desvelando e comunicando
diversos pensamentos que por vezes podia me sentir como se estivesse em seu
ateliê e assim tendo contato com o processo de suas obras. Algumas dessas obras
se mostravam abertas, deixavam transparecer o seu processo de feitura, como se
estivessem exibindo-se com sua complexa simplicidade para o público. É como se o
artista estivesse revelando que sua opção foi abrir mão de uma aura de mistério
e de um status de inalcançável para desmistificar a obra e assim humanizá-la. Mesmo
ao demonstrar essa humanidade, as obras, em nenhum momento deixaram de carregar
genialidade e proporcionar admiração.
Todas as obras da exposição me
pareceram narrativas porque pareciam sempre comunicar alguma coisa. Como se o
artista escrevesse seu livro com obras de arte. E não é isso a arte? “Escrever”
a vida e revelar um pedaço de sua existência? Porém, esta narrativa não é
linear e nem cronológica e o narrador não é necessariamente um personagem, foi
o que senti ao ver na exposição aparelhos como o fenacistoscópio, instrumentos
como alicates e tesouras, materiais como gravetos e fechaduras, suportes como
jornais ou livros que podem incitar por si só, diversas histórias por
carregarem uma “bagagem” de acontecimentos, trajetórias e memórias.
A obra que me chamou mais
atenção foi “Wat Will Come (Has Already Come)” que significa: “O que virá (já
veio)” que é um vídeo feito a partir de desenhos e que é projetado em uma mesa
com um espelho cilíndrico de aço. Os desenhos são projetados distorcidos para
que possam se tornar visualmente normais no espelho curvo. Diante disso o
artista escreve que “a distorção é o correto, e o original é o distorcido” e
nos instiga a pensar sobre as tantas distorções que somos submetidos e que são
consolidadas diante de nosso olhar e que muitas vezes nos levam a acreditar em
realidades que na verdade não passam de reflexos de determinada distorção.
Quantas vezes precisamos nos distorcer para não deixar transparecer algo que
desagrada? Ou quantas vezes ainda precisaremos parecer endireitados para poder ser
aceitável aquilo que originalmente pode ser naturalmente distorcido?
Considero
esta obra como a mais interessante porque além de uma tendência pessoal minha de
valorizar quando uma obra dá margem para que possamos tramar diversas e quem
sabe conflitantes reflexões e interpretações também destaco o caráter sensorial
deste trabalho porque sem que eu estivesse ali, vivendo aquele momento frente
àquela obra e plenamente envolvida naquele ambiente seria impossível que eu tivesse
conhecimento de sua totalidade. Acredito ser esta a grande importância de espaços
destinados à arte: O encontro com essas possibilidades.